Vida de Provedor

Meu amigo Maurício Hu, que foi um grande contribuidor para o Pescaki, escreve muito bem e sempre tem ideias geniais, enviou esta contribuição. Muito agradecido, Grande Maurício!

Maurício Hu

Meu bem, o mamute acabou.
Abri um olho ao ouvir essas palavras. Depois o outro. Fechei os dois rapidinho. Palavras amargas. Procurei fingir que não tinha ouvido, que isso não passava de um sonho ruim, tentei voltar para o sonho anterior, onde uma multidão de moças virgens da tribo vizinha me caçavam para a cerimônia do padu-padu, onde todas teriam que ter um filho meu. E estavam quase me alcançando. Mas o pesadelo voltou:
Bem, as crianças estão com fome!
Filhos. Melhor não tê-los. Onde é que eu estava com a cabeça quando aceitei casar com ela. Bem, tendo em vista o tamanho do machado de pedra do pai dela naquele dia fatídico, na frente do chefe da tribo (que podia jurar, fazia um grande esforço para não rir) creio que foi sorte eu ter mantido ela em cima dos ombros. “-Korg, vamos pegar amoras” – ela tinha dito. Ela tinha dito e o burro aqui acreditou, correndo alegremente de mãos dadas pelos campos como dois esquilos, ela segurando o cestinho de amoras e eu segurando… bem, deixa pra lá. Maldita hora que resolvemos fazer aquele lanche.
– Korg, agora chega! Levante-se e vá buscar comida!
Realmente, este não é um mundo onde um caçador honesto pode descansar seu corpo cansado. Sempre levantando cedo, sempre correndo atrás de um bando de qualquer coisa peluda, onde qualquer um dos perseguidos pode simplesmente se virar e amassar o perseguidor com apenas uma pata. Por que será que aqueles mamutes correm tanto da gente? Será porque não tomo banho desde a última primavera?
Um puxão na pele que me cobria me deixou exposto ao ar frio, o que me convenceu a levantar de vez:
– Levanta logo, vagabundo!
Mulheres, sempre criaturas tão delicadas.
– Paiê, tô com fome – disse o menorzinho, pulando em cima de mim e afundando meu estômago. Nossa, como está pesado, deve ser de tanto comer mamute. Interessante, normalmente os filhos se parecem com o pai, mas este aqui se parece com o Jango, da caverna ao lado… não, não pode ser. Bem, deixe-me ver como está esse tempo.
Brrrrr. Nada mal, uma nevasca e tanto, o nariz congelou quase que imediatamente, a neve quase invadindo a caverna. E ela quer que eu vá caçar, aquela ingrata. Isso, deixe que eu me congele com uma lança nas mãos, enquanto todos ficam aqui no quentinho.
– Paiê, quero ir com você – disse o maiorzinho.
– Filho, isso não é para você ainda, é perigoso, espere crescer um pouco mais que o papai…
– Não, eu quero, eu quero, buáááá, manhê, buáááá…
Sim, ele era um guerreiro nato. Seria um grande caçador algum dia. Até começar a colher amoras com as moças. Mas lá fora a neve alcançava os joelhos, não ia deixar que minha descendência congelasse totalmente. Olhei para ela, ela me daria razão.
– Seu bruto! Tem prometido sempre a ele que vai levá-lo! – disse ela.
Mulheres, sempre cobrando as promessas que fazemos nas horas de fraqueza. Ia lhe dar uma resposta à altura (afinal, quem mandava nestas pedras?), mas ela me encarava com um olhar que já tinha visto na cara de uma ou duas leoas. E afinal, o júnior já estava bem crescidinho. Era melhor manter a integridade.
– Bem, júnior, pegue a lança de papai e vamos.
– Oba ! Oba! Vamos caçar! Vamos caçar mamute! – gritou ele, correndo a buscar minha velha lança.
A alegria de uma criança. O despertar de um novo caçador. Um novo guerreiro. Tocante. Principalmente no meu pé, local onde ele enterrou a ponta da lança quando tropeçou.
Mesmo mancando e com o pé enfaixado (podia jurar que ela segurava um riso quando me enfaixou!), fomos os dois buscar a comida para a família. Dois guerreiros orgulhosos de sua sagrada missão de trazer carne para a caverna e alimentar os seus.
Júnior levava alegremente a mochila, com coisas úteis como um machado de pedra, algumas facas de pedra, algumas pontas de lança de pedra e finalmente, algumas pedras para se refazer tudo se fosse necessário.
Depois de três passos ele largou tudo chorando. Fazer o quê, pai é pai, peguei a sacola e joguei por cima do ombro. Quase caí para trás. Achei melhor aliviar um pouco de peso e joguei tudo fora, afinal, pedra existe em todo lugar por aqui.
Era interessante passar pela caverna de Jango, ele poderia querer ir junto e dois caçariam melhor que um e meio. Jango sempre foi meu companheiro, amigo, amigão desde a infância, quando fizemos o primeiro grupo de caça com os meninos da região e matamos orgulhosamente nosso primeiro mamute. Verdade que todos os outros morreram quando o bicho caiu em cima deles, mas certas lembranças ficam para sempre, nós dois rindo e pulando em cima da carcaça, até que eu escorreguei e caí em cima do espinheiro. Ele ajudou a arrancar os espinhos, enquanto ria. Um amigo fiel.
– Jango! É Korg! Jango, amigo velho!
Ele saiu coberto por uma ou duas peles que iam até o chão. Estava enorme, como tinha engordado! É incrível o que a vida de solteiro pode fazer com um homem. Ele deveria se casar para emagrecer um pouco. Sempre achei que isso deveria ser o contrário.
– Anhh… olá Korg! Aonde vai? Ahhh…C-caçar, com um tempo desses? Ahh…ummm.. aiii…
Ele não deveria estar passando bem, pois gemia e se remexia todo. Achei melhor não incomodá-lo.
– Nada não, deixa pra lá, amigo velho. Vamos algum outro dia.
Jango voltou rapidamente para a caverna e podia jurar que ouvi risinhos, mas deve ser apenas a minha imaginação. Peguei o júnior pela mão e fomos até a trilha de caça.
Crianças. Tive de descongelá-lo duas vezes pelo caminho. Mas estávamos finalmente na trilha da caça maior. Podia sentir o cheiro dela a excitar os sentidos. E provavelmente ela o meu, tinha que trocar esta pele algum dia.
Meu instinto de caçador me dizia que a caça tinha passado exatamente por lá. Meu instinto e as pegadas enormes na neve, onde eu tropecei por uma ou duas vezes. Nessas horas o predador que está nos homens se revela. Fica-se mais atento quando se está na trilha. A visão fica mais sensível. Os músculos ficam mais fortes. O cérebro trabalha mais rápido.
E os intestinos de júnior também, pois tive que limpá-lo. Assim não dá, logo será noite e vamos nos atrasar para o jantar e deixar mamãe um tanto chateada. O rugido à frente indicava que o macho dominante, o líder da manada, o grande mamute estava próximo. O rugido atrás indicava que um leão estava nos seguindo. Nesse caso, o recomendável era uma fuga estratégica até a árvore mais próxima. E rápido!
Não foi fácil subir na árvore carregando a lança, a mochila e o júnior junto. Estava cansado de arrastar aquele moleque. Quando tínhamos começado a correr, o futuro caçador estava um tanto paralisado de medo, o cheiro de vocês sabem o quê indicava novamente um funcionamento rápido e perfeito dos intestinos do meu garoto e tivemos de esquecer temporariamente a caçada gloriosa.
Tive de correr com ele e o resto em cima do ombro, enquanto escolhia alguma árvore que fosse um pouco maior que a minha lança naquele prado gelado. Finalmente encontrei algo decente para subir, uma bela e alta árvore que infelizmente escolheu para nascer no meio do pior espinheiro que já vi. Consegui alcançar o alto do tronco, enquanto o leão arrancava minha atadura com as patas, quase levando meu tornozelo junto.
Tínhamos chegado a uma altura razoável, o bastante para que meus pulmões voltassem aos seus lugares primitivos. O leão esperava pacientemente em baixo da árvore, mastigando as ataduras como aperitivo. Aquele bicho asqueroso cheirava mal. Um exame mais detalhado revelou que não era o leão que cheirava assim e deduzi que o problema de intestinos de júnior devia ser algo contagioso. Aproveitei para checar a caça que perseguíamos, ainda tínhamos a obrigação de levar comida para casa. Olhei à distância. Era uma vista linda e conseguia ver a manada próxima, bem próxima. Muito próxima. Cada vez mais próxima! Era um estouro!
Enquanto o leão fugia para não ser pisoteado e a árvore onde estávamos era continuamente chacoalhada com a batida de diversos corpos, peguei júnior pelo braço. Com um grito de predador pulei em cima do mamute mais próximo, com a lança em riste numa mão e na outra o garoto gritando pela mãe. Calculei mal o pulo e acabei de cara nos espinhos, mas o menino acertou bem no lombo do animal, que urrou e se pôs em disparada com o garoto às costas. Isso sim, é que era filho de um caçador, pensei, enquanto me levantava e voltava correndo para a árvore, driblando as patas dos mamutes. Sim, esse rapaz tinha futuro.
Segui o rastro dos dois por um bom tempo, pelo menos enquanto o leão, que voltou logo após, dava uma folga. Finalmente encontrei o mamute morto depois de ter tropeçado em uma vala e quebrado o pescoço, com o júnior ainda em cima, congelado. Me senti orgulhoso ao vê-lo ali montado, vitorioso, azulado. Era o meu filho. Sim, um verdadeiro caçador, pensei de novo, enquanto acendia mais um fogo e tornava a descongelar aquele predador nato. Júnior, meu filho. Sua mãe ficaria orgulhosa de seu menino já ter se tornado um homem.
E eu também estava, enquanto cutucava com a lança aquele chorão toda vez que ele reclamava de ter de carregar o pernil sozinho. Já era quase noite quando passamos de novo pela caverna de Jango, meu amigão. Deixei um pedaço de carne para ele, coitado. Que bom, já não gemia como antes, mas não saiu de trás da pele que cobria a entrada. Vida difícil, coitado! Por algum motivo ele não quis que eu entrasse, disse que não queria nos atrasar com o adiantado da noite.
Ao chegar em casa, minha mulher não estava. Foi ver a titia, disseram as crianças. Essas mulheres, sempre fazendo visitas às cavernas das comadres. Esquecem das crianças e que o homem da casa, aquele que traz a comida, o provedor do lar, chegou com fome, sede e espinhos. Teria que fazer o jantar sozinho, pensei, enquanto batia a neve da pele que me cobria e descongelava o júnior mais uma vez.
Coloquei um pedaço de carne a assar junto a ele, enquanto olhava as crianças sujarem mais uma parede com aquelas pinturas cretinas de bichos que elas tanto gostavam. Estranho como o menorzinho se parecia com… ah, deixa pra lá. Apontei alguns tocos para elas e atiçava os carvões, pensando em como essa vidinha era difícil. Talvez, algum dia no futuro, os caçadores sejam mais respeitados e a vida mais fácil. E não tenham de sair no frio da manhã toda vez que acaba o mamute.

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3 comentários em “Vida de Provedor

  1. Se o nosso amigo Fred ler certamente dirá que : Mauricio isso não é do meu tempo, sou bem mais novo que você… o Hu vai além da imaginação, escrevendo situações do tempo da pedra…e já naqueles tempos sair para caçar e deixar a dona sozinha já era arriscado tendo o melhor amigo de caça por perto e se negando a ir para a empreitada.

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