O Singelo Sonho de um Velho Pescador

Este texto foi publicado no Fórum Intrépida em 19/04/2004 poucos dias depois que os fatos ocorreram. Quase dois anos depois, em 14/03/2006, foi publicado no extraordinário fórum espanhol SpainBass (www.spainbass.com). Tal como aqui, foi também muito apreciado por meus amigos de lá. Conta como meu formidável Tio Osmar conseguiu fisgar seu primeiro tucunaré com isca artificial e no uso de carretilha que eram coisas que ele ainda não tinha utilizado. Ele estava, então, com 88 anos! Lamentavelmente, pouco mais de três anos depois do ocorrido ele faleceu (19/05/2007), deixando grande lacuna na minha vida de pescador, mas deixando também importantíssimos ensinamentos que muito contribuíram para o aprimoramento do espírito!

Bome

Não há como esquecer certas passagens, ainda que tenham ocorrido em mais tenra e infante fase da vida. Tratando-se de mim, muitas foram passagens diretamente relacionadas à pesca, que trazem à lembrança, imagens de peixes trazidos por pescadores; por outras vezes, vagas lembranças de idas às margens de algum rio ou lagoa; por outras ainda, relatos de pescarias em reuniões familiares.

De todas estas passagens, há um determinado personagem que impera figurar na maioria das lembranças infantis sobre pesca.

Baixinho, quase gordinho, fartas cãs sempre ocultas por notável panamá, de falar manso e estudado, tio Osmar tinha sempre alguma estória de pescaria para contar. Esteve muitas vezes no Mato Grosso naqueles épicos tempos em que peixe, para ser bom, precisava ser maior que o pescador. Mas isso não quer dizer que deixasse de apreciar uma simples pescaria de lambaris, ou de piavas e corimbas, às margens do glorioso Rio Pardo. Quer parecer-me, essas o agradavam ainda mais e, qualquer uma era magnificamente transformada em uma deliciosa estória para ser contada.

Como era bom ouvir aquilo, não só por admirar a própria loquacidade do narrador no assunto, mas também por sentir e pretender que um dia eu próprio estaria participando daquelas aventuras em tão prazerosa companhia.

Quis o destino que nos separássemos e, já há 39 anos, vimos tendo apenas contatos esporádicos, cerca de duas a três vezes anuais, além de não perdermos o contato telefônico, o que me brinda nessa frequência, com novas estórias e “causos” de pescarias, além de poder recordar algumas das antigas.

Viúvo e sem filhos, tem especial afeição por mim e assim, vez por outra me visita; vez por outra visito-o eu. Nesses encontros tudo fazemos para que alguma pescaria se concretize, ainda que venha a ser algo mais simples, dado ao fato de que tio Osmar está hoje com 88 anos.

Há cerca de uma ano, resolveu tio Osmar que iria aprender a arremessar com carretilha e que não aceitaria morrer sem conseguir fisgar um tucunaré na isca artificial arremessada por ele no uso de uma carretilha. Tanto iscas artificiais quanto carretilhas eram coisas que ainda não tinha tentado usar. Assim, certo dia, através de um telefonema, pediu-me instruções de como usar uma carretilha que havia comprado naquele momento. Iria treinar e, quando estivesse “no ponto” viria até Jacareí para cumprir com seu intento quanto ao tucunaré.

Embora com dificuldade para entender por telefone, não esmoreceu, treinou por algum tempo às margens de um açude perto de sua casa, até que um dia recebi um telefonema para buscá-lo e assim, aqui esteve em fevereiro.

É sempre muito bom encontrar tio Osmar. não há como enfastiar-se em sua formidável companhia. Admirado ficaria quem nos acompanhasse na viagem, porque durante todo o trajeto não se fala de outra coisa que não seja pescaria. Ah, pescaria… está no sangue daquele tio; seu coração pulsa pescaria; seu cérebro processa pescaria. Eu, de cima de meus quarenta e todos os anos, ouço-o admirado e orgulhoso de ser seu sobrinho, de tal forma que melhor estaria apropriado a uma criança. Pois então, tio Osmar nem bem chegou e já queria pescar seu tucunaré com sua carretilha, mas por aquelas variações climáticas tão inoportunas que ocorreram nos dias de carnaval, estivemos praticamente impedidos de fazê-lo em quase todos os dias em que aqui esteve. Choveu, choveu e quando parecia ter chovido tudo, choveu mais um pouquinho. Caramba! Será que não iria conseguir fazer o homem fisgar seu primeiro tucunaré no uso de uma carretilha e uma isca artificial? Ah, iria sim! Nem que fosse para embrulhar meu querido velho tio em três ou quatro capas de chuva!

Não deu outra: quando vimos que sua estadia por aqui acabaria passando sem seu tucunaré, combinamos que iríamos de qualquer maneira. Apesar da aparente imprudência, firmamos que não haveria chuva que fosse capaz de nos impedir de ir. Fomos! Para que não se cansasse muito, saímos depois do almoço. Desceu água! Choveu a não mais poder, de forma que serviu mais para que o velho pescador recebesse algumas orientações “ao vivo” no uso da carretilha e com isso, corrigir alguns erros de arremessos, até porque quem, na idade dele, conseguiria aprender de imediato apenas com orientações por telefone? Ainda assim, acabou capturando uma saicanga o que lhe rendeu muita satisfação.

Ah, o ser humano… este não sossega se estiver imbuído de perseverança. E pescador que se preze tem de ser perseverante!

Pescadores perseverantes, no dia seguinte estávamos lá novamente! Já não chovia tanto, muito embora, recebêssemos aos poucos, um ou outro pingo na cabeça.

Para não “forçar a barra” com a disposição física do velho pescador, montei um banco um pouco mais alto pra ele sentar e fazer mais comodamente os arremessos, já que no dia anterior percebi que pouco conseguia equilibrar-se em pé no barco. Também não fui longe, preferindo bater todos os pontos próximos à marina. Isso reduziu um bocado as chances dele. Eu já tinha fisgado quatro tucunas e ele, nada, nenhum! Pobre Tio, já estava ficando chateado e eu, preocupado. “Ah, que meu Tio, não deixe de realizar seu intento”, pensei. Foi quando tive a ideia de lhe sugerir, usasse a isca preferida de minha mulher, com a qual ela costuma, às vezes, me “passar o recibo”, porque funciona muito bem e atinge um pouco mais de profundidade.

Para desespero deste pescador e maior ainda daquele tio, um danado de um tucunaré perseguiu, mas não atacou sua isca. Eu, que assisti, atônito, com o coração à boca, gritei-lhe: “atire lá novamente, tio!” Novo arremesso, nova investida do tucunaré, mas o desgramado estava com uma má vontade dos diabos e não ferrou! Depois, aquele peixe não mais voltou à isca. Talvez se eu o provocasse com outra isca, de trabalho diferente, mas aí, não seria tio Osmar quem o capturaria. Caramba!

Quase ao final do dia, já ia bastante contrariado quando ouvi um impropério tipo: “porcaria de enrosco”! Quando reparei que o “enrosco” corria pro lado, gritei-lhe: “está aí, tio, teu tucunaré”! Ele próprio já tinha percebido tão logo terminara o xingamento! Daí foi uma gritaria infernal que fora ouvida até mesmo na distante marina, que aparece ao fundo na foto.

Só mesmo quem presencia um fato desses pode ver o brilho nos olhos do pescador naquelas condições. Foi sensacional e emocionante ver meu velho ídolo pescador fisgar um peixe na forma que tanto queria, usando o equipamento e isca que recentemente aprendera a usar (aos 88 anos!), cumprindo com a realização de uma vontade toda especial.

Naquele dia, voltamos para casa com a sensação de ter cumprido com uma obrigação. Sentimo-nos realizados! Premiados! Tio Osmar, pela realização de sua vontade; eu, por ter propiciado isso a ele! Que maravilha!

Olhem o Tiozão aí! Ave Maria, Isso foi Demais!

Deu até um beijinho no tucuna antes de soltá-lo. Aliás, soltar peixe foi para ele uma novidade que aprendeu comigo e já vinha fazendo isso há algum tempo em nossas pescarias de piavas no Rio Paraíba-do-sul. Este meu Tio era Único! Sem dúvida!

PS. Depois de sua passagem, Rafael Chamorro, um amigo do SpainBass, teve a ideia de modificar a primeira foto para deixá-la no formato abaixo, resultando muito a propósito. Também me avisou que a seu tempo fariam uma homenagem ao meu Tio. Muito grato a você, Grande Rafael Chamorro!

Alguns meses depois de seu falecimento, no dia 27/09/2007 meus amigos espanhóis fizeram um encontro de pescadores na represa de Navallana e lá, fizeram uma bonita homenagem para meu querido Tio. Transcrevo abaixo o que fizeram:

En la presa de Navallana hizimos una parada, para hacer una ofrenda a la memoria del “Tio Osmar”. Fué nuestra pequeña aportación al compromiso adquirido por mí, con nuestro querido amigo Domingos.

Con todo el cariño y reconocimiento del Foro :137: ” al Grande Tio Osmar

En la ofrenda de los 12 claveles blancos que depositamos en Navallana, tuvimos también un recuerdo especial, para aquellos seres queridos, que ya no están con nosotros. José Mena, tu amigo y compañero de pesca también duerme en el recuerdo de todos nosotros.

Como podemos ver, estes formidáveis amigos fizeram algo inesquecível e serei sempre muito grato a eles!

Sua bênção, meu querido Tio Osmar!

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10 comentários em “O Singelo Sonho de um Velho Pescador

  1. Você me colocou na “máquina do tempo” Grande Bomediano com este relato, não só saudosista demais para quem cresceu e aprendeu a ser o que somos hoje,…seja pelas mãos de amigos ou de alguém familiar tão carinhosamente repleto de afeições. O SR, OSMAR de ontem, é o nosso Bomediano de amanhã, quantas semelhanças físicas bem visíveis, até no bigode! – só me resta estar aqui nesse mundo para vê-lo assim. que o anjo TIO OSMAR nos acompanhe lá de cima, estrelando nos com o céu brilhante nas pescarias noturnas. Muito agradável e emocionante relato que não li no Pescaki…se não o fez lá, que pena! o nosso amigo Mauricio ficaria enciumado. SHOW!

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    1. Curiosamente não foi publicado no Pescaki, mas foi porque o fórum foi criado bem depois da primeira publicação e acabou não levado para lá. Mas achei que seria importante trazê-lo para cá, ao menos para deixar preservado. E, ademais, meu formidável Tio Osmar merece ser lembrado, sempre! Grato pelo comentário, Grande Roque!

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  2. Que relato… Confesso que o li, e fiquei com os olhos cheios de lágrimas, mesmo não conhecendo o Tio Osmar, pude sentir toda emoção do sobrinho e seu tio juntos!
    Além disso lembrei-me de alguns tios que me tornaram viciado pela pesca, com muita saudade.
    Obrigado amigão Bomediano por mais essa!

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    1. Pois então, meu Irmão Shigue, Tio Osmar foi o grande influenciador para que eu e meus Irmãos nos apaixonássemos pela pesca! Em tudo o que foi na vida, este Tio foi um exemplo para nós e deixou muita saudade! Grato pelo comentário!

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  3. Grande Sr Domingos!!!
    Seu querido Tio Osmar me fez lembrar de meu Pai, Sr David, com que aprendi o gosto pela pesca. Nos idos dos anos 80, quando ele trabalhava na fábrica de adubos, as pescarias eram praticamente semanais.
    Muito bom ter alguém assim nas nossas vidas.

    Forte abraço, meu Querido!!!!

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    1. Penso que todos nós temos um “Tio Osmar” na vida, de maneira que para um foi o próprio Pai, para outro, um Tio, enquanto que para outro ainda, pode ter sido algum parente diferente mas de igual valor. Tais pessoas viveram a nos ensinar o melhor da vida! Grato pelo comentário, Grande Luciano!

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  4. É meu amigo… O talento da escrita traz à vida esse magnífico momento que, felizmente, creio ter lido com a mesma emoção em sua primeira publicação na igualmente saudosa Intrépida!
    Fez brotar alguns sentimentos saudosistas até já esquecidos pela correria do dia a dia! Admiro seu talento “no manejo da pena”. Sensacional, como sempre!

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