A pesca segundo Ninjitski

Meu amigo Maurício Hu, que foi um grande contribuidor para o Pescaki, escreve muito bem e sempre tem ideias geniais, enviou esta contribuição. Muito agradecido, Grande Maurício!

Maurício Hu

Já há alguns meses, passeando por entre as bancas de peixe do mercado municipal, hábito que cultivo todas as manhãs desde criança, o que não é nada fácil se você detesta cheiro de peixe, ocorreu o fato que marcou definitivamente a minha vida. Enquanto passava o mais rápido possível entre a banca de camarões e a de ostras frescas, um detalhe fugaz chamou aminha atenção, algo de canto de olho, que só foi possível perceber por que não estava naquele momento com as mãos tapando o nariz. Era algo que merecia mais atenção, tinha de ver o que era.

Depois de parar bruscamente e levar um escorregão no chão molhado, me transformando em uma quebra de rotina interessante aos feirantes locais, que comentariam aquilo por dias, obtive o objeto que me causou tanta comoção e uma conta da lavanderia. Era um livro, uma publicação aparentemente um tanto manuseada, pelo aspecto das folhas se soltando. Sim, sei agora que era um aviso do destino. Eu, um reles mortal, teria acesso a algo raro, uma revelação, um grande livro de pesca e por que não dizer agora que já o desvendei, um grande paralelo com a nossa vida, pobres seres humanos.

Mas não foi tão fácil assim ser o escolhido. Tive de passar pela primeira provação, que foi o tombo. Antes de arremessar o livro longe, ou usar as suas páginas para limpar a minha calça dos camarões aderidos, dei uma olhada na capa: A pesca segundo Ninjitski. Aguardei mais um pouco antes de arremessá-lo longe, afinal, quem era Ninjitski? O que um livro de pesca faria ali? Por que eu não fugia dali o mais rápido possível para não ouvir as risadinhas dos feirantes?

Entrei na cafeteria do mercado em busca de um capuccino. Normalmente era lotada naquela hora, mas naquele momento consegui um lugar imediatamente. Para dizer a verdade, todas os clientes saíram quando eu entrei, tapando os narizes. Estranho. Agora sei que era o segundo aviso.

Sorvia o meu capuccino alegremente enquanto folheava a primeira página, onde estava a biografia de Ninjitski. Interessante. Ninjitski tinha nascido em Berlim, 1914, filho de pai judeu e mãe zoroastrista. Era algo pouco comum, mesmo para os padrões vigentes. Se pelo menos fosse o contrário.

Com o firme propósito de dar ao filho a educação que não teve, o pai o mandou estudar com o grande Otto Zimmerman, ex ministro do Kaiser, na época considerado grande pescador, talvez o maior de seu tempo e lugar. Desde o início Ninjitski revelou habilidades excepcionais que deixaram o velho mestre judeu constrangido perante os discípulos, com altos índices de captura, mesmo em locais sem água.

Certa vez capturou uma truta dentro do vaso de flores da esposa de Zimmerman, assustando os presentes ao almoço de batizado do sobrinho do mestre. Zimmerman ficou fulo, acusando-o de querer aparecer justo para os parentes da mulher dele, que não comiam peixe. Mais tarde, acalmado pela esposa, reatou relações com Ninjitski, desde que ele devolvesse a truta. Dizem alguns estudiosos que esse foi o estopim do famoso caso do telegrama Zimmerman, mas há controvérsias.

Proezas como essa, antes de abatê-lo, o estimulou a mais, como a vez em que desafiou toda a gangue de pescadores do baixo Volga para um duelo com varas de pesca. Vencidos e humilhados, a gangue rancorosamente destruiu a escola do mestre e deixaram os dois nus e amarrados com linhas de pesca dentro de um barril de hering em conserva por dois dias, até que os aldeães ouviram os gritos.

Foi a gota d’água para Zimmerman. Depois desse episódio, conhecido nos livros de história por “A Cisão”, ou de acordo com Richardson em “Casos Grotescos do Passado” editora Zpltch, U$23,50, mais intimamente como “Que *****”. A relação entre os dois nunca mais foi a mesma. Depois da briga, a maioria dos discípulos do velho mestre passou então para o lado de Ninjitski, mais popular. Zimmerman desde então nunca mais pescou, passando a se dedicar a outros hobbies, como a política e a espionagem, culpando Ninjitski por isso em suas memórias.

Depois disso, houve o casamento com Etta Frieda. Um caso notável, que mereceu duas linhas no famoso “Nothing Zeitung” de Berlim. Diz-se que durante o casamento, Ninjitski, para impressionar os discípulos presentes, demonstrou a sua técnica de arremesso em igrejas. Pouco acostumado com igrejas pequenas de madeira, o anzol enganchou na lapela do padre, que ainda tentou escapar pulando várias vezes por entre os bancos.

A Santa Sé tentou anular o casamento, alegando que o incidente até não teria muita importância se não fosse a insistência dos presentes em se medir e pesar o padre, solto logo após, sobre aplausos insistentes dos convidados. Como não foi possível ao bispo conseguir dados mais concretos sobre aquela noite fatídica, nem ao menos uma foto para registro, o caso foi abafado.

Pouco se fala da vida íntima do casal,exceto que tinham preferência por águas rápidas e iscas de superfície. Devia ser uma vida fascinante.

Tomava o quinto capuccino, servido pelo garçom que perdeu no par ou ímpar. Estava totalmente arrebatado pelo que lia. Era incrível. Com o coração aos pulos, parei um instante de correr os olhos pelas frases. Fechei momentaneamente o livro sem perder a página, que marquei com uma cabeça de camarão. Com os olhos cerrados, imaginei a época e as agruras que esse grande homem tinha passado. Como os grandes do passado eram incompreendidos. Quando os abri novamente os garçons me olhavam e tentei disfarçar. Esquisito, ninguém mais tinha entrado no bar depois de mim. Voltei a ler sofregamente.

Com o advento do nazismo, começou uma época difícil para a família. Sim, a Alemanha nunca mais seria a mesma depois disso. Foi uma época negra. Ninjitski ainda estava indeciso se deveria imigrar quando a Gestapo invadiu a escola e quebrou todos os seus caniços, inclusive um que foi presente de Hiroíto, quando de sua famosa turnê no Japão. Mas sentiu-se bem mais incentivado quando na semana seguinte confiscaram e espetaram a sua premiada coleção de anzóis debaixo de suas unhas e o obrigaram a comer os peixes empalhados que enfeitavam a sala de aula.

A essa altura, seus pais já estavam na Holanda, de onde partiriam para Miami. Naquele momento, a velha mãe Alemanha já não lhe parecia mais um bom lugar para se viver ou comprar um terreno.

Escapou costurado dentro da barriga de um atum, procedimento usado pelos resistentes quando ele tentou passar seus ensinamentos ao grupo guerrilheiro local, fato que causou a deserção de metade dos partisanos para o exército alemão. Um escândalo. O atum não era tipo exportação.

Foi a época do acidente que marcaria a sua vida de forma indelével. Etta, costurada dentro de uma garoupa, foi por engano servida no jantar de aniversário do Füher, sendo descoberta por Hitler* quando ele alegremente e incentivado pelos presentes começava a cortar o lombo do peixe. Enviada a um campo de concentração, resistiu por pouco tempo. Suas últimas palavras, ouvidas por uma sobrevivente foram: “Ninj, aquele estúpido.” (Richardson – Histórias que vovó contava – U$ 12,20).

Ninjitski, arrasado com a notícia, foi para Cuba, buscando um lugar onde não acontecessem mais revoluções ou perseguições cruéis. Dizem os presentes que as primeiras palavras quando aportou em Havana, suado, foram:

– Mein Got, onde estar a peixe?

E de lá, já estabelecido e tendo construído uma nova escola, com a ajuda de antigos discípulos começou a escrever o primeiro capítulo da maravilha da qual eu possuiria um exemplar razoavelmente conservado. E este, que parecia apenas um calhamaço de páginas se descolando, revelava-se um guia completo para a vida do homem comum, pura filosofia, com muitos paralelos na vida real. E era todo meu! Que grande sorte!

Sorvia o décimo quinto capuccino e os garçons jogavam novamente para ver quem ia me expulsar do bar. Indignado, paguei a conta e fui para casa, com o livro escondido dentro da camisa. Não podia correr o risco de que fosse assaltado e me roubassem a preciosidade, o que realmente aconteceu mas se contentaram com a carteira e os sapatos.

Depois da biografia do mestre, li e reli aquelas páginas muitas vezes, usando os ensinamentos não apenas durante a pesca, que nunca pratiquei, mas e principalmente passando as mensagens nas reuniões periódicas do clube, às quais infelizmente e inexplicavelmente não sou mais convidado.

Hoje, guardo a relíquia em um lugar de honra em minha biblioteca, entre meu almanaque Abril de 96 e uma edição original de Os Lusíadas, autografada. E de onde a tiro apenas para consulta dos capítulos mais obscuros e troca do camarão, um ritual.

Capítulos que sei hoje propositadamente herméticos para a posteridade não iniciada, como o cap. VIII, “Linguado,isso é um peixe?”, ou o que leio agora, cap. XVI, “Resolvendo querelas com os guarda-caça”.

Mostro a seguir as grandes pérolas do pensamento de Ninjitski, normalmente frases com a qual abria a temporada de aulas ou respondia publicamente a desafios, sempre a contragosto e com a mão na cintura, onde deixava o revólver. Algo para ler e suspirar:

– Para pescar um peixe, você tem que ser mais esperto que ele.

( gravado na aula inicial da Universidade de Princeton)

– Como a mão tem cinco dedos, o pé também deve ter.

(desafio a Templatz, seu rival em “DiálogosImaginários de Disney” –

Richardson – U$15,23)

– Não, não, arremesse na água, estúpido.

(desabafo na primeira aula de Churchill, frase atribuída. (“Pegue aquele

peixe, cretino!” – Richardson – edição encerrada )

– Sim, amor, pegue a vara.

( “Opalinas de Mendellson”, cap.XI, segundo parágrafo)

– Vire agora e puxe delicadamente, isso, assim… Aii!

( Cap. XXII, Afiação de anzóis em duplas simples)

* de Hitler, diz-se que ele não era um cara legal.

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4 comentários em “A pesca segundo Ninjitski

  1. Poxa! faltou no Pescaki. interessantíssima se publicado periodicamente partes deste ensinamento de alguém como o iluminado Ninjitski. Valeu Hu! muito bom ler aqui através do Bome seus relatos, obrigado Bomediano por compartilhar e ser uma via de comunicação entre os bons amigos.

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